O dilema da representação partidária em tempos pós-modernos

Os partidos políticos, em um sistema democrático e pluripartidário, podem ser entendidos, genericamente, a partir de duas acepções básicas: em primeiro lugar, são criados para serem estruturas de interação entre cidadão e Estado e, em segundo, são organizações que estruturam a escolha pelo voto. Por isso, aliás, como sugere cientista político Leon Epstein, partidos não são uma condição suficiente para a democracia, mas uma condição necessária.
Entretanto, pode-se constatar que vários fatores impedem que as agremiações partidárias desenvolvam as funções acima apontadas. Diante dessa constatação e considerando a abrangência do tema, a presente reflexão pretende analisar, por um lado, a crise gerada às democracias partidárias em decorrência da ascensão e hegemonia da ideologia neoliberal, cuja principal conseqüência, no campo político-partidário, foi a ruptura das identidades tradicionais pautadas em estruturas agregadoras e inclusivas, tais como os partidos; e por outro, aventar acerca da crise vivida por tal sistema democrático, ocorrida em decorrência do incremento das disputas eleitorais modernas estruturadas em elementos midiáticos ou, nas palavras de Schwrtzenberg, tendo como pano de fundo, sociedades espetacularizadas ou até mesmo estados espetacularizados.
Segundo o historiador britânico Perry Anderson, as origens do neoliberalismo, enquanto um fenômeno distinto do liberalismo clássico remontam ao período do pós-II Guerra Mundial, tendo surgido como uma reação teórica e política ao Estado interventor e de bem-estar. Segundo Anderson, o texto que inaugurou essa corrente ideológica foi O Caminho da Servidão, de Frederick Hayek, produzido já em 1944. O texto é um frontal ataque aos mecanismos de limitação de mercado por parte do Estado, denunciados como uma ameaça letal à liberdade, não só econômica, mas também política.
A principal tese sustentada por Hayek, que foi endossada pelos demais defensores da corrente neoliberal, era a de que o chamado novo igualitarismo desse período, promovido pelo Estado provedor, destruía a liberdade dos cidadãos e a vitalidade da concorrência, da qual dependia a prosperidade de todos. Desafiando o consenso oficial da época, eles argumentavam, nas palavras do mesmo historiador britânico, que a desigualdade era um valor positivo – na realidade imprescindível em si – pois disso precisavam as sociedades ocidentais. Os limites deste trabalho não permitem aprofundar as transformações e impactos trazidos pela adoção do modelo neoliberal nas sociedades em que foi aplicado. Para a presente análise, o importante é observar o aspecto mais geral da hegemonia alcançada pelo neoliberalismo enquanto ideologia que, segundo Anderson, alcançou êxitos num grau com o qual seus fundadores jamais sonharam, disseminando a idéia de que não há alternativas para os seus princípios, que todos, seja confessando ou negando, têm de adaptar-se as suas normas. Nesse sentido, provavelmente nenhuma sabedoria convencional conseguiu um predomínio tão abrangente desde o início do século como o neoliberalismo adquiriu a partir da década de 1990 e que, de um modo ou de outro, permanece até a atualidade. Este fenômeno chama-se hegemonia, ainda que, naturalmente, milhões de pessoas não acreditem em suas receitas e resistam a seus regimes.
Essa hegemonia neoliberal também se expressou igualmente no comportamento de partidos e governos, mesmo daqueles que formalmente sempre se colocaram como seus opositores, vide eleição e governo de Luiz Ignácio Lula da Silva.
No caso dos partidos do tipo catch-all (termo consagrado por Otto Kirscheimer para designar um partido que, em busca da vitória, tenta atrair eleitores situados nas mais diversas posições do espectro político), não houve tantas dificuldades, já que sua amorfa constituição mostrou-se bem mais flexível e maleável para abrigar diferentes subsistemas ideologicamente conflitantes. Mas o aparecimento dos inúmeros subsistemas, como grupos de minorias étnicas, ecologistas, organizações não governamentais, movimentos feministas de vários tipos, e outros, impeliu as agremiações partidárias a modernizarem-se sob pena de perderem grande parte dos recursos necessários à sua sobrevivência.
No aspecto simbólico, também se observam mudanças: a crescente complexidade social culminou com a ruptura das identidades tradicionais pautadas em estruturas agregadoras e inclusivas, como igrejas e partidos. Tais organizações se enfraqueceram frente aos novos subsistemas especializados que formam identidades mais efêmeras, na medida em que, como sugere Floriano Ribeiro, estão em permanente rearranjo com outras microestruturas com o fito de melhor atender a seus interesses particularistas. Esse fato dificulta grandemente a construção de relações duradouras de identidades partidárias.
Ao mesmo tempo em que ocorreram essas mudanças institucionais, verificou-se um extraordinário avanço dos modernos meios de comunicação de massa, o que associado ao novo quadro multipartidário, marcado pela grande fragmentação, possibilitou o retorno do personalismo.
É importante salientar, entretanto, que votar em função do candidato não significa, necessariamente, um retorno ao mesmo personalismo anteriormente existente. Como muito bem frisou Flavio Silveira, não se trata mais de um personalismo na antiga acepção de uma identificação durável em função de fidelidade, paternalismo, tradição, veneração e devoção pessoal. Embora reconheçamos que muitos desses aspectos possam ainda existir, esse personalismo possui características efetivamente novas: grande parte do eleitorado que atualmente vota em função do candidato estabelece relações de identificação pontuais, efêmeras, voláteis, definidas eleição a eleição, tendo em vista atributos dos candidatos percebidos através de construção midiática.
As campanhas eleitorais modernizadas desenrolam-se tendo como pano de fundo, sociedades espetacularizadas ou até mesmo estados espetacularizados, como diria Schwrtzenberg. Nesse universo, a imagem televisiva é o liame principal entre o indivíduo e o mundo real, constituindo-se, com sua linguagem artificial, fragmentada, em forma de espetáculo, em poderoso modelador de fenômenos sociais e políticos, que passam a ter a necessidade de se adequar à sua estrutura. Assim, segundo o filósofo e cientista político Giovanni Sartori, a televisão é não só um instrumento de comunicação, mas também um organismo antropogenético, na medida em que molda os indivíduos, e, sendo instrumentalizada eficazmente, acaba impondo aos dominados a visão de mundo dos dominantes.
Assim, a centralidade da mídia como elemento de mediação alterou o modo de fazer política, já que seus agentes tiveram que se amoldar à linguagem televisiva e ao uso de técnicas cada vez mais sofisticadas e específicas, sob pena de situarem-se em oposição marginalizada no jogo político. Por esse motivo, alguns autores já chegaram a falar em uma completa substituição dos partidos pela televisão, uma visão excessivamente pessimista a qual não tendemos a endossar. Isso porque existem determinadas funções nas quais a televisão não conseguiu substituir os partidos e provavelmente não conseguirá, tais como a de traduzir interesses e demandas societárias em políticas públicas exeqüíveis, por exemplo. Mas não se pode negar que mesmo essas funções que continuam sendo dos partidos sofrem muitas influências diretas da imprensa.
Portanto, entendemos que para o fortalecimento da democracia brasileira, é absolutamente necessário incrementarmos também as nossas agremiações partidárias. Mas para isso, se torna ponto central da agenda política nacional, a tão propalada reforma política, em que aflore como elementos centrais, entre outras coisas, a criação de cláusulas de barreiras, no sentido de diminuir a grande quantidade de partidos e, assim, tornar as casas legislativas, nos três níveis de poder, menos fragmentadas, o que poderia permitir a construção de alianças mais programáticas e menos pragmáticas; a construção de regras mais claras quanto à formação de coligações, bem como a institucionalização de mecanismos que incentive a fidelidade partidária.

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