Sobre a onda de violência no Rio de Janeiro

A sociedade brasileira se encontra atônita diante da verdadeira guerra civil a que foi submetida a cidade do Rio de Janeiro desde domingo, dia 21 de novembro, quando criminosos, ao que tudo indica a mando de traficantes presos no Complexo Penitenciário de Catanduva no Paraná, iniciaram uma onda de terror, por meio de atos de vandalismo, especialmente ateando fogo em automóveis e em vários pontos da cidade, inclusive pelas principais vias expressas que cortam o perímetro urbano da Região Metropolitana do Rio de Janeiro.
Os principais analistas atribuem tais atos, entre outras coisas, à implantação das chamadas Unidades de Polícia Pacificadora, as UPPs, levado a cabo pelo Governo do estado do Rio de Janeiro e coordenada pela Secretaria de Segurança Pública do Estado em parceria com a Polícia Militar.
Sem desmerecer ou desconsiderar tais explicações, o presente artigo pretende trazer à tona alguns aspectos, principalmente eventos históricos, que foram fundamentais para que o problema da violência e do crime organizado naquela cidade atingisse índices tão alarmantes. Tal reflexão se torna ainda mais pertinente pelo fato de que pouquíssimas vezes foram mencionadas pelos analistas que se manifestam nos principais veículos de comunicação de massa do país. Apesar de tal negligência, firma-se a idéia de que é impossível compreender a escalada de violência no Rio de Janeiro, sem recorrer à explicações acontecimentos e descasos pretéritos.
Em primeiro lugar, é importante entendermos que, em decorrência da economia do açúcar, o centro político e econômico do país até o início do século XVIII era a região Nordeste, especialmente Pernambuco. Essa realidade só veio a sofrer transformações bruscas com a descoberta de ouro nas últimas décadas do século XVIII, numa área que posteriormente se tornou submetida à Coroa Portuguesa e que, mais tarde, veio a receber o Estatuto de Capitania de Minas Gerais.
A partir deste momento, o eixo Rio-Minas tornou-se o centro das atenções da Coroa, além de local de atração demográfica. Alguns números dão contra de que, entre 1700 e 1808, a população mineira cresceu de 30 mil para 433 mil habitantes, redundando em um processo de crescimento desordenado. Com o esgotamento da mineração, grande parte desse contingente se dirigiu para a capital da colônia – o RJ.
No século XIX, o Rio de Janeiro foi mais uma vez região para a qual se dirigiram fluxos migratórios por ocasião da transferência da Corte portuguesa para o Brasil, ocorrida em 1808 devido às circunstâncias geopolíticas marcadas pelas Guerras Napoleônicas. Neste momento, o Rio de Janeiro possuía aproximadamente 60 mil habitantes e uma péssima infraestrutura: falta de água potável e poços contaminados redundavam em febres que se difundia pela população, inexistência de rede de esgoto, algo que começou a ser construído em 1860, pouquíssimas ruas eram calçadas, etc. E de uma hora para outra, se viu diante da chegada de uma Corte composta por aproximadamente 15 mil pessoas. Isto é, houve um acréscimo de um quarto na população do Rio de janeiro, sem que existisse qualquer estrutura para tal crescimento.
Segundo o Historiador José Murilo de Carvalho, na condição de maior cidade e grande centro econômico, político e cultural do país, o Rio de Janeiro sentiu em grau mais intenso as agitações que marcaram o fim do Império, sobretudo a abolição da escravatura e a proclamação da República. E novamente, as principais modificações se deram no campo demográfico que, de algum modo, já vinham ocorrendo, mas que se acentuaram no final do XIX e trouxeram muitos reflexos no tocante à composição étnica e da estrutura ocupacional dos fluminenses.
Em nível de exemplo, a população carioca quase dobrou entre 1872 e 1890, passando de 266 mil para 522 mil habitantes. Esses números revelam que boa parte da população da então capital vieram de outras regiões do Brasil. Nesse momento, apenas 45% da população era nascida no Rio de Janeiro.
Esse inchaço populacional trouxe diversos problemas entre os quais, dois se destacam: a questão do emprego e da moradia. Números mostram que mais de 200 mil pessoas eram subempregadas em 1906, sem contar a grande quantidade de desempregados. Em outras palavras, a cidade não conseguiu agregar todo esse excedente demográfico, inclusive aquele oriundo da abolição da escravatura. Isso gerava outros problemas como gatunagem, prostituição, além de uma grande quantidade de menores abandonados, e mais uma série de outras mazelas.
Saliente-se também o impacto do crescimento populacional acelerado no que tange ao agravamento das más condições de habitação, tanto qualitativa com quantitativamente. Isso gerou o surgimento de diversos cortiços, nos quais as pessoas viviam em condições subumanas, pois eram extremamente anti-higiênicos contribuindo, por sua vez, para o alastramento de epidemias de todos os tipos. Para nos dar uma idéia da dimensão dos problemas que o Rio de Janeiro enfrentava, José Murilo de Carvalho nos relata que o governo inglês concedia a seus diplomatas um adicional de insalubridade pelo risco que corriam em viver numa cidade com tantos perigos.
Paralelamente a esse conjunto de mudanças, foi a política talvez o aspecto mais saliente das transformações e abalos sofridos pela capital federal. A Proclamação da República trouxe grandes expectativas no que diz respeito à ampliação do exercício da cidadania, que era restrita, na fase final do império, a um pequeno grupo. Pela expectativa despertada, pelas lutas a que deram início e por razões diretamente vinculadas à política, os primeiros anos da República foram de repetidas agitações e de quase permanente excitação para os fluminenses. Rebeliões militares como a Revolta da Armada, greves e agitações de todos os tipos marcaram a vida dos cariocas nesse momento.
Apesar de todas as promessas que o novo regime trazia, toda a euforia verificada diante da proclamação da República foi seguida por uma grande frustração. A realidade encontrada é bem diferente da que os principais ideólogos da República anunciavam. A nossa República consolidou-se sobre o mínimo de participação política, sobre a exclusão do envolvimento popular no governo. Consolidou-se sobre a vitória da ideologia liberal pré-democrática, darwinista e oligárquica. Nas palavras do mesmo José Murilo de Carvalho, “[...] a relação da República com a cidade só fez, em nosso caso, agravar o divórcio entre as duas e a cidadania [...]”, ou seja, “[...] Na República que não era, a cidade não tinha cidadãos [...]”.
Diante da total exclusão da política oficial, a participação popular na política se dava fora dos canais e mecanismos previstos pela legislação e pelo arranjo institucional da República. Assim, o povo mantinha seus módulos de participação social nos bairros, nas associações, nas irmandades, nos grupos étnicos e, principalmente, por meio dos motins e rebeliões cujo exemplo máximo, naquela Primeira República (1889-1930), foi a Revolta da Vacina.
Tal crescimento desordenado continuou no decorrer do século XX, sobretudo nos momento de desenvolvimento industrial que, no caso do Brasil, ocorreu em surtos. A população brasileira que no início do século se concentrava majoritariamente na zona rural (cerca de 75%) passou, em aproximadamente 50 anos a ser urbana em sua maioria (cerca de 75%, contra 25% na zona rural).
Um fato veio a agravar a situação do Rio de Janeiro: a transferência da capital para Brasília, ocorrida em 1960. Ou seja, as divisas e atenções que esse estatuto garantia, se deslocaram do Rio. Mas os problemas sociais adquiridos com o crescimento exagerado não se transferiram para a nova capital. O que ocorreu foi exatamente o inverso: a cidade continuou recebendo migrantes. Sem possibilidades de se integrarem de maneira adequada á cidade, em termos de trabalho, habitação, saúde, educação, etc., esses migrantes passaram superlotar os morros da cidade, que já estavam ocupados. Associado a isso, a partir da década de 1970, tais áreas passaram a ser dominadas por grupos criminosos, sobretudo do tráfico de drogas, algo que vem se acentuando nas últimas décadas, cujo ápice atravessamos nesse momento, com a última onda de conflitos entre traficantes e as forças policiais do Estado.
Os problemas relacionados à violência no Rio de Janeiro não é, portanto, obra do acaso, como muitos quarem atribuir, mas sim obra do descaso. A elite e os poderes constituídos, ansiosos com um modelo de desenvolvimento excludente e concentrador de renda, simplesmente fecharam os olhos para tais mazelas que se materializavam bem embaixo dos seus narizes.
A poucos anos da realização de dois dos maiores eventos esportivos do mundo, esperamos que as ações do governo do estado do Rio de Janeiro, em parceria com as Forças Armadas, que estão retomando algumas das principais comunidades cariocas, retomadas essas consubstanciados na instalação das chamadas Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), tenham um caráter sistemático e não se percam nas recorrentes políticas de governo e ausências de políticas de estado. A nós, resta acompanhar o desfecho fazendo votos para que vidas não se percam, pois se as coisas degringolarem ou retroagirem, só nos restará a indagação lançada pelo amigo e professor Igor Vitorino da Silva: lembrarão os torcedores de 2014 e 2016, do sangue derramado para construir sua zona de conforto?

0 comentários:

Postar um comentário